Desde que era pequeno, Sacha se lembrava que, na primavera, seu pai sempre trazia para casa uma comida de aparência estranha. Ele dizia às crianças que era uma tradição da família comer aquele negócio chamado matsá nesta época do ano.
Quando Sacha tinha 18 anos e as flores da primavera começaram a desabrochar, seu pai o mandou ir até a sinagoga comprar matsá para a família. Ele se dirigiu à sinagoga de Moscou, onde encontrou, pela primeira vez, um cavalheiro chamado Rav Ariê Katsin. Logo lhe perguntou onde poderia comprar matsá.
“Você sabe por que se come matsá?”, perguntou-lhe Rav Ariê. “Não exatamente...” respondeu Sacha. “Meu pai disse que é uma tradição familiar comê-la nesta época do ano!” Lembrava-se que a família costumava comer matsá junto com pão - ou até mesmo com carne de porco. Nunca lhe ocorrera que poderia ter qualquer significado religioso.
“Sacha! Muitos anos atrás, os judeus foram libertados da escravidão no Egito e esta liberdade é comemorada ao comermos este tipo de alimento!” Rav Ariê tentou lhe explicar. Mas ele não se impressionou. “Sacha!” Rav Ariê exclamou com mais entusiasmo, quase em tom de ordenação. “Você é judeu e precisa sempre lembrar isto!”
Conversaram por um longo tempo e Rav Ariê convidou Sacha a retornar em outra oportunidade para conversarem melhor. Algumas semanas depois ele voltou.
Devagar e com muita paciência, Rav Ariê começou a ensinar Sacha sobre o judaísmo. Certo dia, Rav Ariê resolveu tocar num assunto delicado. Ele fez uma breve introdução a respeito de uma mitsvá que os judeus têm feito por toda a sua história, independente das circunstâncias e das consequências. A mitsvá a que se referia era o berit milá, a circuncisão ritual. Sacha, que não era circuncidado naquela época, escutou tudo, mas ficou hesitante em se submeter à cirurgia na idade que estava. Mas, então, Rav Ariê leu para ele o versículo (Yechezkel 16:6) recitado em cada berit milá e depois disse: “Sacha, lembre-se sempre, você pode pensar que está desperdiçando e se “enlameando” com seu sangue, mas é bedamáyich chayi - através do seu sangue (do berit milá)é que você viverá!” Isto o impressionou.
Sacha voltou para casa aquela noite com a expressão “através do seu sangue é que você viverá!” ressoando em seus ouvidos. Depois de alguns dias, concordou em fazer seu berit. Secretamente, para que as autoridades soviéticas não ficassem sabendo, os preparativos foram feitos e o berit realizado.
Sacha começou a frequentar a sinagoga com mais frequência e, como era um bom músico, pediram-lhe para animar a festa de Purim. Algumas semanas depois, Rav Ariê organizou um piquenique secreto de Lag Baômer e Sacha tocou música para os participantes. Naquela mesma noite, entretanto, recebeu visitantes. Eram agentes da KGB, a polícia secreta soviética. Eles queriam uma relação de todos os judeus que participaram do piquenique naquela tarde.
Sacha não acreditou no pedido. Será que pensavam que iria se tornar um informante?! Se recusou a citar até mesmo um único nome. As autoridades lhe disseram: “Sacha, em algumas semanas você receberá sua carta de convocação para o exército. Nós podemos arranjar para que seja mandado para a brigada de músicos, para que nunca tenha que servir na linha de frente!” Ele adoraria tocar música no exército russo, mas nunca faria isso à custa de outros judeus. Não tinha fortes compromissos religiosos, mas prejudicar outro judeu através da delação estava fora de questão.
Algumas semanas depois, recebeu sua carta de convocação e tinha sido alocado para o treinamento básico. Antes de partir para o exército, Rav Ariê lhe deu um sidur e disse: “Guarde isto com você todo o tempo e faça uso dele todos os dias. No mínimo, diga os versos do Shemá Yisrael!”
Por algum tempo, Sacha usou o sidur ocasionalmente, mas, aos poucos, foi abandonando-o por completo. Entretanto, quanto mais se familiarizava com os outros soldados de sua barraca, mais se decepcionava com eles. Seu desencantamento começou nas refeições. Quando a comida era servida nas mesas, os soldados pulavam em cima dela como animais. Os soldados soviéticos que já estavam alistados há mais de um ano sentiam-se como “veteranos”, arrancando a comida e demais mantimentos dos novatos. Muitos desses soldados eram pessoas que Sacha havia conhecido na escola, e estava chocado ao ver quão bestiais haviam se tornado. Eles tomavam vodca regularmente, xingavam, praguejavam, eram imorais e, pior de tudo, odiavam os poucos judeus que havia entre eles.
Sacha começou a perceber que não desejava e não poderia viver a sua vida como eles viviam. Para Sacha, eles representavam a mais baixa forma de vida humana. Antes de entrar no exército, pensara que seus colegas seriam educados, mas viu o quanto se enganara. Estava enojado com eles, e isto o levou a se aproximar dos outros quatro judeus que estavam na sua brigada.
Em seus dias de folga, começou a passar mais tempo com outros jovens judeus que lhe haviam sido apresentados através do Rav Ariê Katsin em Moscou.
* * *
Nenhum soldado soviético amava os judeus, mas o maior anti-semita de todos era um enorme “urso” humano chamado Dimitri, da Ucrânia. Media quase dois metros de altura e impunha medo sobre todos. Ele, pessoalmente, ridicularizava e infernizava os judeus sem piedade. Não lhe fazia diferença se o soldado judeu era do tipo que tentava se socializar com os outros ou se era do tipo quieto, leitor de livros, introvertido. Dimitri desprezava todos os judeus e, junto com seus seguidores, deixava isto bem claro.
Certo dia, quando Sacha passava entre as barracas, pensou ter ouvido sons de luta vindos de um dos quartos. Ao abrir a porta, viu o enorme Dimitri montado em cima de um dos soldados judeus, prestes a desferir-lhe um soco. Tudo o que podia ver de Dimitri eram suas enormes costas. Instintivamente, correu para cima do homem e, com um salto, agarrou-o pelo tórax e arrancou-o de cima do judeu indefeso.
Ambos, Sacha e Dimitri, se levantaram do chão. Sacha começou a recuar em direção à porta pela qual entrara, certo de que a briga agora seria com ele. Entretanto, algo aconteceu que mudou sua vida para sempre. Dimitri estava muito chocado para lutar. Começou a gritar como um animal. Suas veias do pescoço estavam saltadas, como cabos de aço, e seus olhos estavam escancarados. Ele gritou, xingou, ameaçou, amaldiçoou e então exclamou: “Eu lhe garanto que você se ‘enlameará’ no seu próprio sangue!” E assim, retirou-se do quarto.
Sacha ficou paralisado. Tinha ouvido aquela expressão “se enlamear com seu sangue” em algum outro lugar, em outra época! Na outra oportunidade, esta expressão havia tocado seu coração - e então se lembrou! Rav Ariê Katsin havia lhe dito alguns meses antes: “Você pode pensar que está desperdiçando e se ‘enlameando’ com seu sangue, mas é bedamáyich chayi - através do seu sangue (do berit milá)é que você viverá!” Ouviu isso antes de fazer o seu berit milá. Sacha estava em êxtase. Sabia, em seu coração, que não podia ser acidental que aquela criatura baixa e perversa usou uma expressão similar à que um tsadic havia usado.
Sacha correu o mais rápido que pode para o seu quarto, pasmo e confuso. “Hashem!” começou a dizer para si mesmo. “Dê-me um sinal de que o Senhor está aqui!” Correu para o seu armário, onde escondia seu sidur, e pegou-o. Abriu-o aleatoriamente em qualquer página. Nela viu os versos do Shemá Yisrael em grandes letras! Era a oração em hebraico com a qual estava mais familiarizado. “Não pode ser!” pensou. Deveria ser coincidência que a frase que dera força aos judeus por milhares de anos houvesse aparecido justo naquele momento, quando ele pedira um sinal dos Céus. Fechou o sidur e abriu-o, novamente, em outro lugar. Não podia acreditar em seus olhos. Aí estava de novo - o verso do Shemá Yisrael! “Isto é impossível!” pensou consigo mesmo. Fechou o sidur e abriu-o uma terceira vez, perto do fim do livro. Aí estava ele de novo - o Shemá Yisrael! Sacha não percebeu naquele momento, mas abrira o sidur primeiro na oração de Shachrit, depois em Arvit e depois em Arvit de Shabat, que estava impresso perto do final do sidur. O Shemá Yisrael está contido nestas três orações.
Tomado pela emoção, começou a chorar. Com os olhos cheios de lágrimas, recitou o Shemá como nunca fizera antes. Depois, com grande fervor, recitou versos do “Tehilim” (20:2): “Yaanchá Hashem beyom tsará - Que o Eterno te responda no dia da aflição”.
Sacha estava simplesmente exuberante. Não podia esperar por sua próxima folga para encontrar seus amigos judeus em Moscou. Estava pronto, agora, para um total comprometimento com o judaísmo. Alguns dias depois, chegou o seu tradicional domingo de folga. Na primeira oportunidade, contou a seus amigos em Moscou tudo o que havia transcorrido. Expressou, então, seu interesse em aprender o máximo que pudesse sobre a Torá e a observância das mitsvot. Sacha pegou também seu primeiro tsitsit, que usaria secretamente por baixo de seu uniforme de soldado do exército russo.
Conversando com seus amigos de Moscou, disse que desejava participar das comemorações do próximo evento judaico. Queria ser parte integrante, na prática, do povo judeu. Perguntou ao Rav Ariê qual a próxima festividade e ficou surpreso com a resposta. De todos os dias possíveis, era um dia de jejum - Taanit Ester, o Jejum de Ester - comemorado um dia antes de Purim. Seria em duas semanas, numa terça-feira. Sacha disse que faria o possível para estar de volta neste dia.
Seu próximo problema seria conseguir uma folga no meio da semana. Nunca se ouviu que um soldado do exército soviético tivesse tirado folga em qualquer outro dia que não no domingo. Sabia, também, que jejuar no exército seria quase impossível. Ficaria óbvio para todos que ele não estaria comendo.
Ao aproximar-se Taanit Ester, Sacha implorou ao oficial de plantão para que, desta vez, pudesse tirar um dia de folga no meio da semana. Alegou que sua família estaria se reunindo para um importante evento. Por alguma razão que Sacha nunca conseguiu descobrir, o oficial lhe deu a raríssima permissão de folgar numa terça-feira.
Sacha passou todo o dia de Taanit Ester em companhia do Rav Ariê, em Moscou. Ele recitou as Selichot - orações especiais de arrependimento - jejuou e tentou estudar o máximo que pôde sobre a história e o significado de Purim, o feriado que viria no dia seguinte. “Comemoramos o dia em que os judeus foram salvos dos descendentes de Amalec”, explicou-lhe Rav Ariê. Sacha ouviu a história do perverso Haman e de seu plano diabólico que falhou.
De noite, Sacha ouviu a leitura da Meguilat Ester e voltou, rapidamente, para a sua barraca no exército. Quando se dirigia ao seu quarto, encontrou um grupo de soldados esperando por ele. “Onde você se enfiou?!” todos gritaram ao mesmo tempo. “Você não pode imaginar o que aconteceu ontem por aqui! Onde, em todo o mundo, você esteve? Foi um milagre que você não estava aqui ontem!”
Todos falavam juntos e levou alguns instantes até Sacha conseguir entender o que havia ocorrido. No dia anterior, Dimitri, que neste meio tempo havia sido expulso do exército, voltou com um grupo de amigos procurando por Sacha. Estavam bêbados, loucos de raiva e fora de controle. Tinham vindo para matar Sacha e vingar o que ele fizera a Dimitri duas semanas antes. Estavam armados e fizeram uma busca em todos os quartos. Felizmente, não conseguiram encontrá-lo, pois ele estava em Moscou, comemorando o dia em que os judeus foram salvos dos descendentes de Amalec.
Sacha entendeu, então, que também ele havia sido poupado. Sorriu confiante, soltando um suspiro de alívio. Em silêncio, agradeceu a D’us. Seria um Purim do qual se lembraria para sempre!
Tradução da história “Purim Coins”, do livro “The Maggid Speaks”, de autoria
do Rabino Pessach J. Krohn. Publicado com permissão da Mesorah Publications.