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Pirkê Avot Capítulo I, Mishná I

Rabino Ari Friedman

A Guemará nos diz que uma pessoa que quer ser "chassid" - bondoso - que está um grau acima do "tsadic" - justo - deve cumprir tudo que está escrito na Ética dos Pais. Assim, esta seção traz a sabedoria da Mishná nos maravilhosos conceitos do Pirkê Avot.

Capítulo I, Mishná 1

Moshê kibel Torá Missinay, umssaráh Lihoshua, Vihoshua lizkenim, uzkenim linviim, unviim messaruha Leanshê Kenêsset Haguedolá. Hem ameru sheloshá devarim: hevu metunim badin, vehaamídu talmidim harbê, vaassu seyag Latorá.

Moshê recebeu a Torá no Sinai, e entregou para Yehoshua, Yehoshua aos anciãos, os anciãos para os profetas, e os profetas a entregaram aos membros do Grande Conselho Rabínico. Estes disseram três coisas: Sejam cautelosos no julgamento, formem muitos discípulos e façam uma cerca de proteção para a Torá.

“Para Yehoshua”

Por que Yehoshua foi o escolhido para receber a Torá de Moshê? Por que não algum outro aluno ou até mesmo um dos filhos de Moshê? O Ramban (Rabino Moshê ben Nachman; Espanha e Israel, 1192-1270), um dos grandes explicadores da Torá, em suas explicações no início do livro Bamidbar, até registra que Yehoshua não era o melhor dos alunos de Moshê!

Um dos motivos dessa escolha foi o fato de Yehoshua ser muito humilde, assim como seu mestre Moshê Rabênu. De onde se sabe isto? Quando Moshê mandou os espiões para inspecionarem a terra de Israel, ele rezou para que Yehoshua não se influenciasse pelos outros espiões. Por quê? Explica o Chatam Sofer, baseado no Targum Yonatan ben Uziel, que uma pessoa humilde é mais frágil e mais suscetível de ser influenciada. Assim sendo, Moshê rezou por seu aluno Yehoshua, que era extremamente humilde, para que não se influenciasse e fosse levado pelas más idéias dos outros espiões.

A humildade é uma característica muito importante. O livro Chovot Halevavot e o Ramban explicam que a humildade é a melhor qualidade que a pessoa pode ter. A pessoa humilde não precisa de muito, satisfaz-se com pouco, não entra em atrito com os outros e, mais ainda, pode chegar a adquirir todas as outras boas virtudes também.

Uma segunda explicação ensina que Yehoshua foi escolhido pelo fato de ser o mais esforçado. Não foi o mais inteligente quem prevaleceu, mas sim o mais esforçado. Podemos presenciar este fato hoje em dia também. Entre os alunos das escolas e yeshivot, aqueles que mais crescem nos estudos nem sempre são os inteligentes e com “boas-cabeças”, mas sim os mais esforçados.

Há ainda uma terceira explicação que diz que Yehoshua era o shamash de Moshê, auxiliando-o em tudo que precisava. O Talmud (Berachot 7b) nos ensina: “É maior o que auxilia quem estuda Torá do que aquele que, ele próprio, estuda”. E por quê? Pois quem auxilia um rabino está observando, fazendo e aprendendo na prática, enquanto que quem estuda aprende somente na teoria.

“Os Anciãos para os Profetas, e os Profetas a entregaram aos membros do Grande Conselho Rabínico”

A Mishná diz que Moshê entregou a Torá para Yehoshua, e este para os anciãos, e estes para os profetas, que a entregaram para o Grande Conselho Rabínico. Por que a Mishná precisou repetir no final o termo “entregaram” e não o fez nos casos intermediários?

Explicam os comentaristas do Pirkê Avot que os membros do Conselho Rabínico viveram na época da destruição do Segundo Templo, uma época cheia de perseguições e tragédias. Assim sendo, poderíamos pensar que, devido a tantas conturbações e problemas, a transmissão da Torá talvez se tornara imprecisa e falha. Para refutar esta idéia, a Mishná utilizou o termo “entregaram”: Da mesma forma que Moshê a passou para Yehoshua, assim também a Torá (escrita e oral) foi transmitida intacta até o Grande Conselho Rabínico, de uma forma perfeita e completa.

Em seguida a Mishná cita três passos que o Grande Conselho Rabínico nos aconselhou a tomar, algo aparentemente dirigido apenas a rabinos e juizes: Sejam cautelosos no julgamento, formem muitos discípulos e façam uma cerca de proteção para a Torá.

1. “Sejam cautelosos no julgamento.”

Se uma mesma questão se apresentar três, quatro ou cinco vezes, não pense que você já sabe a resposta, respondendo-a imediatamente. Pare, pense e pesquise novamente, pois às vezes podem aparecer novidades que não havia nas primeiras vezes.

A cautela é algo necessário a todos nós, não somente aos rabinos e juízes. Várias vezes vemos que as pessoas são muito impulsivas e, ao ouvirem uma pergunta, logo respondem sem parar para pensar. Se tivessem analisado melhor a questão, a resposta poderia ter sido melhor e mais correta. Devemos sempre ser muito cautelosos e pacientes na hora de falar, pensar ou agir.

2. “Formem muitos discípulos (em hebraico: haamídu talmidim harbê).”

A Mishná usa o termo “haamídu” que, literalmente, quer dizer “colocar de pé”. Explica o Rabino Ovadyá de Bartenura que antigamente todos estudavam Torá em pé, pois era algo de muita santidade (hoje em dia decaímos muito e podemos estudar sentados).

O Tossafot Yom Tov (Rabino Yom Tov Lipman Heller; Praga, 1579-1654) traz uma segunda explicação para este termo, explicando que é dever de cada rabino colocar seu aluno “de pé”. Não somente dar aulas de Guemará e pronto, mas também ensinar mussar e hashcafá, entre outros assuntos. Um jovem que vai estudar numa yeshivá normalmente está muito “cru”, sem experiência, e precisa de alguém para “colocá-lo de pé” em tudo. Só assim poderá enfrentar depois os desafios que a vida lhe apresentar e superá-los da melhor maneira possível.

Uma terceira explicação para o termo “colocar de pé” é que antigamente cabia aos rabinos sustentar seus alunos quando estes não tinham condições, proporcionando-lhes comida e um local para dormir. Muitas vezes ouvimos histórias de rabinos que cederam sua própria cama para seus alunos e cuidaram para que não lhes faltasse nada.

O que a Mishná quer dizer com a expressão “muitos alunos”? Explica o Bartenura que a pessoa deve procurar ter muitos alunos para poder ensinar Torá a eles. A Guemará, em Berachot (28a), conta sobre uma discussão que houve entre diversos rabinos sobre quem poderia estudar na yeshivá. Raban Gamliel dizia que somente os melhores rapazes poderiam entrar na yeshivá; os que não fossem excelentes não poderiam. Assim realmente aconteceu por muito tempo.

Certo dia, o comando passou para Rabi El’azar ben Azaryá, que “abriu as portas” a todos os que quisessem estudar. Ele justificou sua atitude dizendo: “Se o jovem não é bom agora, ficará bom por meio do estudo da Torá”.

De fato, vemos que o Rambam (Rav Moshê ben Maymon, também conhecido como Maimônides; Espanha e Egito, 1135-1204) legislou que a halachá (a lei da Torá) segue a opinião do segundo rabino, que permitiu ingressar na yeshivá todo aquele que quisesse estudar Torá.

A Mishná usa a expressão “muitos alunos” para mostrar que devemos aceitar todos e ter muitos alunos, como pensava o Rabi El’azar ben Azaryá.

Os comentaristas do Pirkê Avot perguntam: Por que a Mishná empregou a expressão “haamídu talmidim harbê (formem discípulos muitos)”? Deveria ter sido usada a linguagem “haamídu harbê talmidim (formem muitos discípulos)”!

Há quem responda que talvez a intenção da Mishná fosse que os rabinos tenham alunos que estudem muito tempo, e não necessariamente muitos alunos. Todos sabem que, quanto mais a pessoa estuda Torá, mais ela se completa em sabedoria, discernimento e boas características. Não podemos comparar alguém que estudou um ano com aquele que estudou quatro, sete, ou mais anos. Quanto mais a pessoa estudar, mais força terá para superar os futuros desafios da vida e afastar-se dos pecados. A única maneira de a pessoa se manter forte na vida e não falhar nos testes que se apresentam é ter uma base forte e firme em Torá.

3. “Façam uma cerca de proteção para a Torá.

Uma das maravilhas que constatamos na Torá são as “cercas” que nossos sábios instituíram ao seu redor. O objetivo destas cercas é não chegarmos a pecar - e elas foram muito bem calculadas.

Uma pessoa poderia pensar que já está bem formada emocionalmente e que poderia confiar em si contra as tentações da vida. Num caso desses, para que precisaria de cercas?

Nossos sábios vieram nos ensinar nesta mishná uma grande verdade sobre a personalidade humana: todos os seres humanos são emocionalmente muito frágeis e ao aproximarem-se de uma situação de pecado, é-lhes muito difícil não pecar.

Quanto mais acatarmos as cercas estipuladas por nossos sábios, mais longe do pecado ficaremos e menos chances teremos de tropeçar.

Vejamos um exemplo de “cerca” que nossos sábios instituíram. Na Torá está escrito que um nazir (nazireu) não pode beber vinho nem comer uvas. Já a Guemará diz que o nazir não pode nem entrar em um vinhedo! Mas por que não? Que mal faria passar por um vinhedo? Explicam os nossos sábios que o nazir não pode entrar no vinhedo para não sentir vontade de tomar vinho e então pecar.

O livro Messilat Yesharim explica que o problema das tentações é generalizado e não se aplica somente ao nazir. Todos precisamos de cercas para impedir que caiamos na tentação do pecado. Devemos saber que ninguém pode confiar em si mesmo, que esteja tão emocionalmente firme e que não cairá. O yêtser hará (má inclinação) é muito forte e a luta contra ele é muito difícil. Para isto foram instituídas as cercas: para não dar ao yêtser hará espaço para nos provocar para que pequemos.

Os comentaristas do Pirkê Avot trazem a seguinte questão: Há um versículo na Torá que diz (Vayicrá 18:30): “E guardareis meus objetos já guardados”, de onde os rabinos aprenderam que se deve fazer cercas ao redor das mitsvot. Por que, então, a Mishná precisou citar novamente a necessidade de cercas? Já não basta o versículo?

O Chatam Sofer explicou que muitas vezes não levamos a sério as cercas, achando que são somente uma prevenção. Assim, consideramos que elas são maleáveis ou negociáveis. Já que são apenas cercas (e não a mitsvá em si), podemos transgredi-las sem maiores consequências. Isto está errado! Por causa deste equívoco a Mishná repete: “Façam cercas - para a Torá”, querendo dizer que as cercas são parte da Torá e que devemos considerá-las como se fossem a própria Torá. A Mishná ensina que, ao cuidarmos das cercas, estaremos realmente cuidando da própria Torá!

Conclui o Chatam Sofer dizendo que por intermédio das cercas podemos constatar se uma pessoa cumpre a Torá e suas mitsvot porque gosta e quer, ou porque assim recebeu de seu pai e cumpre-as por obrigação. Se virmos que um indivíduo faz mais do que o seu pai lhe passou e cumpre as cercas das mitsvot, isto é uma prova de que cuida das mitsvot porque gosta e quer cumpri-las, não simplesmente porque assim aprendeu. Quão importantes são as cercas e o quanto devemos ser cuidadosos com elas!

do livro “Mussar Avicha”