
Após os terríveis anos do Holocausto, milhares de criancinhas judias órfãs circulavam pelas ruas - famintas, descalças e azuis de frio.
Outros milhares de órfãos judeus receberam uma nutrição melhor. Não tão boa, mas aparentavam melhores condições que seus semelhantes. Estes não circulavam abandonados pelas ruas; eram crianças que cresceram em conventos.
Quando os nazistas começaram a invadir os países vizinhos na Europa, muitos judeus passaram a desconfiar do futuro incerto.
Entre estes “desconfiados”, tornou-se comum o seguinte procedimento: os pais de família pegavam grande parte de seus pertences, verdadeiras fortunas, e colocavam-na sobre seus filhos - enfeites, jóias preciosas, ouro, dinheiro, documentos. Depois o casal levava as crianças para seus vizinhos não judeus e dizia-lhes:
“Nós precisamos ficar sozinhos por algum tempo, não sabemos o que pode acontecer aos judeus. Temos um pedido a fazer-lhes. Por favor, fiquem com nossa fortuna e com nossas crianças. Digam que elas fazem parte de sua família. Cuidem delas por alguns meses que nós voltaremos para buscá-las assim que pudermos. Toda a fortuna pode ficar para vocês. Mas, por favor, cuidem bem de nossos filhos durante os próximos meses.”
Depois de alguns meses, quando os judeus já tinham sido confinados em guetos ou em campos de concentração, os não judeus levavam as crianças para conventos e diziam aos diretores:
“Vejam, estas crianças são órfãs judias. Eduquem-nas e façam com que se transformem em bons cristãos.”
Assim, logo após a Segunda Guerra Mundial, era muito comum que jovens judeus, principalmente na Europa Oriental, estivessem vivendo em conventos. Milhares e milhares de crianças judias foram educadas levando cruzes no peito.
Um dos grandes homens que tentou salvar parte destas crianças foi o rosh Yeshivat Ponevitch, Rav Yossef Shelomô Kahaneman (1886/1969). Ele mesmo perdera grande parte de sua família, alunos e suas instituições judaicas no Holocausto.
Certa vez o Rav Kahaneman chegou em um convento onde, segundo suas estimativas, havia cerca de duzentas crianças judias entre as mil internas.
Ele foi até o diretor e disse:
“Senhor diretor, nós dois sabemos que neste estabelecimento existem cerca de duzentas crianças judias. Eu sou um rabino e também um pai que perdeu seus filhos no Holocausto. Eu peço ao senhor que, por favor, deixe-me levá-las, para que haja uma continuidade para o judaísmo. O senhor bem sabe, foram 6.000.000 de mortos. Dentre eles, 1.200.000 crianças... Por favor...”.
O diretor olhou nos olhos do Rav Kahaneman e respondeu-lhe:
“Ilustre rabino, eu entendo o senhor. Entendo bem o seu sentimento. Mas posso pedir ao senhor, por favor, que deixemos a emoção de lado por um instante? Analisemos as circunstâncias racionalmente. Sejamos práticos!
“O senhor sabe”, continuou o padre, “quando estas crianças chegaram aqui? A maioria está conosco há cinco ou quatro anos. Há algumas que vieram há três ou dois anos. Elas chegaram aqui com idades entre dois e doze anos. O senhor imagina o que elas passaram nos últimos cinco anos? Passaram bombardeios, sofrimentos, fugas, surras, frio, geadas, fome, doenças. Há crianças que assistiram com os próprios olhos o assassinato de seus pais antes de chegarem aqui...
“O que o senhor imagina? Que eu lhe daria alguns anos para investigar o passado delas, para descobrir a verdade sobre cada uma dessas 1.000 crianças? Que eu devo esperar até que o senhor faça com que elas eventualmente revivam algo de judaico em suas mentes? Alguém em sã consciência pode imaginar que, depois de cinco anos como esses, elas se lembrem do Shabat? Que recordem o que é cashrut, como se jejua no Yom Kipur, o que é chamets?
“Será que todos os pais dessas crianças faziam questão de transmitir-lhes o judaísmo? Não é mais provável que nesta época de terror eles quisessem esconder seu judaísmo?
“Se o senhor permanecer aqui fazendo questionários e preenchendo relatórios durante alguns anos, talvez encontre uma ou outra criança judia...
“Infelizmente, não posso consentir com sua solicitação. Eu necessitaria de uma evidência definitiva para liberá-las. Se você entrar no refeitório, certamente não conseguirá distinguir as crianças que procura.
“Mesmo o berit milá não é uma prova definitiva! Há crianças não judias que fazem berit milá. E também há judeus que não fizeram berit milá em seus filhos durante esses anos. E quanto às meninas, o que fazer?...
“Pelo menos, as crianças que estão aqui felizmente não foram incluídas entre as 1.200.000 assassinadas...”
O Rav Kahaneman ouviu atentamente as palavras frias do padre e depois disse educadamente:
“Eu não lhe peço anos, meses, semanas ou dias de investigações. Nem horas ou simples minutos. Peço-lhe unicamente 60 segundos. Por favor, deixe-me voltar no final da tarde, antes de as crianças se recolherem aos seus aposentos para dormir. Deixe-me vê-las durante 60 segundos e talvez eu possa lhe apontar quais são as crianças judias.”
O padre gargalhou ao ouvir o pedido, que parecia absurdo ou até insano. Certamente o rabino desejava apenas olhar para as crianças para dar-lhes algum tipo de bênção antes de voltar para sua terra.
Sendo que isso deixaria o rabino com a consciência tranquila, o diretor consentiu:
“Eminente rabino, pois não! O senhor pode voltar hoje à noite. O salão será todo seu. Mas saiba que atenderei ao seu pedido com um cronômetro na mão. Serão apenas 60 segundos. Depois disso nos despediremos cordialmente.
O Rav Kahaneman voltou. Ele entrou num grande salão e observou as crianças prontas para ir dormir após o jantar. Em poucos instantes fez-se silêncio e mil pares de pequenos olhos curiosos fitaram-no.
O sábio pôs-se no meio do salão e, vagarosamente, gritou a primeira frase do Shemá Yisrael:
“Shemá Yisrael, Hashem Elokênu, Hashem echad”.
Por um instante o silêncio foi ainda mais absoluto. Mas, logo depois, cerca de duzentas crianças abandonaram suas mesas e correram para o rav de Ponevitch gritando em yídish com lágrimas nos olhos: “Mamãe, mamãe!”
As crianças choravam, o rav chorava, e dizem que o padre também chorou.
Após definitivamente identificadas as crianças judias, o padre disse ao rabino:
- Certamente o senhor venceu! Essas crianças são suas. Oitocentas crianças estão imóveis como estátuas, enquanto outras duzentas o abraçam, beijam e chamam-no de mamãe! Como você fez isso?
- Quando cheguei aqui - respondeu o rabino - eu também imaginei que as crianças judias não se lembrariam de seu judaísmo.
- Pode-se esquecer tudo - continuou o sábio - mas a mãe não se esquece durante toda a vida. Assim, o que aconteceu hoje foi a associação de dois conceitos aparentemente independentes: a recitação do Shemá noturno e a mãe. As mães daquelas crianças, sem exceção, faziam questão de recitar carinhosamente com elas o Shemá Yisrael todas as noites antes de dormirem. Aquele momento mágico todas as noites fez com que as palavras Shemá Yisrael ficassem armazenadas em suas mentes junto com a lembrança de suas próprias mães.
Aquelas mães, mesmo depois de queimadas no Holocausto, salvaram seus filhos, filhas, seus netos e toda a sua descendência.
Não sobraram jóias, dinheiro, fortunas, carros ou casas. Não sobraram ensinamentos. Restara apenas um versículo espiritual, seis palavras da Torá sagrada. Sobrevivera o único sentimento que foi impossível tirar das crianças. Foi isso que as salvou.