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Pirkê Avot: Capítulo 1 Mishnayot X e XI

Rabino Ari Friedman

A Guemará nos diz que uma pessoa que quer ser "chassid" - bondoso - que está um degrau acima do "tsadic" - justo - deve cumprir tudo o que está escrito na "Ética dos Pais". Assim, esta seção traz, de forma simples, a sabedoria da Mishná por meio dos maravilhosos conselhos do "Pirkê Avot".

Shemayá Veavtalyon kibelu mehem. Shemayá omer ehav et hamelachá usná et harabanut veal titvadá larashut.

“Shemayá e Avtalyon receberam deles (dos sábios mencionados anteriormente). Shemayá disse: Goste do trabalho, despreze o rabinato e não se torne muito próximo às autoridades.”

Estes dois tanaim (sábios da Mishná) eram convertidos e tornaram-se grandes sábios do nosso povo.

Esta Mishná nos aconselha sobre o modo que as pessoas devem encarar seu trabalho.

“Goste do trabalho, despreze o rabinato”

A pessoa que trabalha em alguma profissão deve gostar do que faz. Não deve enxergar seu trabalho como um mal necessário, algo em que precisa sofrer para garantir o seu sustento. Deve fazê-lo com amor.

Já o Rabino Chayim de Volojin explica esta Mishná de um modo bem interessante e polêmico. Ele diz que o empregado que trabalha duro não deve sentir-se mal por não estar estudando Torá ou não ser rabino. Ele precisa saber que o que faz é muito bonito e deve fazê-lo com vontade. O Talmud (Berachot 8a) diz: “É maior aquele que se sustenta a partir do esforço de suas mãos do que o temor a D’us”. A explicação desta Guemará é que aquele que se sustenta com seu próprio trabalho é mais louvado do que aquele que não trabalha e se sustenta pelo favor dos outros. Aquele que exerce uma profissão precisa ter orgulho do que faz e deve fazê-lo com gosto.

O Rabino Chayim segue explicando seu trecho mais polêmico: Já o rabino deve “odiar” o seu trabalho. A pessoa que ocupa o cargo de rabino não deve gostar ou sentir-se bem com isso. O trabalho rabínico para garantir o sustento da família pode ser feito, mas o indivíduo não deve ficar feliz e orgulhoso com isto.

Existem várias histórias de grandes sábios que se esforçaram para não exercer a profissão de rabino, procurando outras alternativas de sustento. Rabi Akiva Eiguer, por exemplo, não queria ser rabino. Mas todos os seus bens foram queimados em um incêndio. Após este incidente, ofereceram-lhe um cargo de rabino. Como a Torá era a sua “especialidade”, ele aceitou. Algo semelhante aconteceu com o seu genro, o Chatam Sofer, e outros que não queriam obter seu sustento da Torá, mas acabaram fazendo-o por falta de opções.

A Mishná nos ensina que aquele que trabalha, seja em que ramo for, deve estar feliz e fazê-lo com vontade. “Já os rabinos”, explica o Rav Chayim de Volojin, “que não exerçam sua profissão com todo o gosto e vontade. Que saibam que isso não é o ideal”.

Em meu trabalho, vejo muitos jovens questionando-se sobre qual será sua profissão: empresário, profissional liberal, rabino, entre outros. Ao resolverem, decidem também como será o seu empenho nos estudos da Torá. Quando resolvem seguir a carreira rabínica, começam a esforçar-se mais nos estudo. Quando escolhem alguma profissão laica, a aplicação é menor. Isto está duplamente errado, pois em ambos os casos a pessoa deveria estudar com empenho, para conhecer a matéria. É errado estudar apenas com o intuito de ser rabino ou fazer “corpo mole” por ter escolhido outra profissão. A pessoa não deve estudar mais Torá com a meta de ser rabino, tampouco menos Torá porque planeja ser um empresário. Deve-se estudar para conhecer a Torá, para entendê-la e aplicá-la, pois assim nos foi ordenado.

A maioria dos rabinos que conhecemos realmente não estudou visando apenas o cargo de rabino. Muitas vezes estudaram com o intuito de saber e, posteriormente, D’us fez com que as circunstâncias os colocassem no posto de rabino. Não sabemos o que D’us tem destinado para cada um de nós. Cada um deve fazer sua parte e estudar Torá de forma sincera, com seriedade. Se depois ele se tornará rabino ou empresário, isso está nas “mãos” de D’us. Os rumos da vida não partem da pessoa por si só; o Todo-Poderoso dirige as coisas para que ocorram da maneira que Ele deseja.

Outra opinião explica que a expressão “rabanut” nesta mishná significa “aquele que está sobre os outros, que domina alguém”. Assim, a Mishná nos diz para não procurarmos dirigir os outros, para não querermos ser assim, pois é um comportamento que não nos será bom.

Uma terceira opinião explica o termo “rabanut” como “um certo orgulho”. Existem pessoas que não aceitam qualquer tipo de trabalho, pois alguns não combinam com elas. Dizem que são tarefas “baixas” demais. A Guemará (Pessachim 113a) diz: “Seja um vendedor ambulante de carne na feira e não diga: ‘Sou uma pessoa importante e não fica bem para mim (ser vendedor ambulante)’”. A Mishná nos diz para odiarmos este tipo de orgulho. É muito melhor trabalhar em algo que pareça não ser tão “honrado”, mas um trabalho honesto, do que não poder sustentar a família.

Alguns comentaristas explicam que “rabanut” quer dizer “não fazer nada”. A pessoa deve gostar de trabalhar e odiar ficar sem fazer nada. É muito ruim para a pessoa não ter o que fazer. A Guemará (Ketubot 59b) diz que não fazer nada causa tédio, chateação e monotonia.

Sobre o assunto de trabalho, o Chovot Halevavot pergunta: Por que D’us criou o mundo desta maneira - de forma que trazer o sustento para casa é algo tão difícil? No deserto, o Povo Judeu recebia seu sustento diretamente do céu, na forma de man. Por que hoje em dia temos de trabalhar para trazer o pão para casa? Ele explica que quando a pessoa trabalha, fica ocupada e preocupada com suas responsabilidades e não tem tempo de pecar. Ela permanece em sua rotina de trabalho diário com seriedade e, portanto, não comete nenhum pecado. Aquele que fica sem fazer nada e não tem responsabilidades, está mais propenso a fazer coisas erradas.

Baseando-se nisto, os comentaristas da Torá explicam por que o decreto Divino de o ser humano trabalhar foi determinado somente após o pecado de Adam. Antes de isso acontecer, enquanto o Yêtser Hará (a má inclinação) estava “do lado de fora” do ser humano, não havia pecados. Portanto, o homem não precisava trabalhar. Após o pecado de Adam, ao comer da fruta proibida, o Yêtser Hará “entrou” no homem. A partir de então ele ficou propenso a falhar e cair. Foi aí que D’us decretou que ele teria de trabalhar, para que ficasse ocupado e longe do pecado.

Constatamos isso no versículo da Torá que diz: “Amaldiçoada seja a terra por sua causa”. O Malbim (Rabi Meir Leibush, Polônia, 1809-1879 - famoso comentarista da Torá) explica que “por sua causa” significa “para o seu bem”. A terra foi amaldiçoada de forma que o homem necessitasse trabalhar nela para o bem dele, pois ficaria ocupado e não pecaria.

Porém, a pessoa deve saber que existe outro meio de ficar ocupada e não pecar - com o estudo da Torá. A sexta mishná do terceiro capítulo diz que “quem assume sobre si o jugo da Torá, são-lhe retirados o jugo do governo e o jugo das obrigações mundanas. Porém, quem retira de si o jugo da Torá, são-lhe impostos o jugo do governo e das obrigações mundanas”.

A vontade de D’us é que a pessoa fique ocupada para que não peque. A pessoa pode escolher com o que se ocupar. Se escolher o esforço no campo da Torá, D’us retirará dela outros jugos, pois todo o intuito é ocupá-la. Por outro lado, aquele que escolher outra forma de se ocupar, D’us lhe apresentará também o jugo das questões materiais.

O Chovot Halevavot conclui este conceito, tratando daquele que chegou a um nível de confiança total em D’us, ou seja, que já entrega plenamente seu destino em Suas “mãos”. Explica o Chovot Halevavot que quando este tsadic quer estudar mas precisa trabalhar, “que trabalhe pouco, o mínimo possível para fazer sua parte, e estude o resto do tempo. D’us lhe enviará seu sustento conforme o merecido. Entretanto, aquele que não está interessado em estudar, que trabalhe o máximo possível, para assim permanecer ocupado e não deixar que entrem em sua cabeça pensamentos de pecado”.

Avtalyon omer: chachamim hizaharu bedivrechem shema tachôvu chovat galut vetiglu limcom máyim haraim veyishtu hatalmidim habaim acharechem veyamutu venimtsá Shem Shamáyim mitchalel.

“Avtalyon disse: sábios, sejam cautelosos com suas palavras, pois pode ser que sejam exilados para um lugar de águas ruins (heresias), seus discípulos beberão destas águas e morrerão (espiritualmente), e o nome dos Céus será profanado.”

Esta mishná está escrita em linguagem metafórica e poética. Ela previne os rabinos e sábios a tomarem cuidado com suas palavras, não as deixando sujeitas a interpretações equivocadas. Como explicam os comentaristas do Pirkê Avot, palavras que soariam perfeitamente razoáveis nos ambientes tranquilos das salas de estudo, se forem levadas a locais de “águas ruins”, ou seja, locais em que haja filosofias estranhas e possivelmente heréticas, podem adquirir dimensões totalmente novas e perigosas.

Neste caso, suas palavras sofreriam um exame mais rigoroso e crítico. Pessoas que não entendem ou não querem entender o verdadeiro sentido, distorceriam-nas de uma maneira a ficarem irreconhecíveis. Seriam citadas erroneamente, mal interpretadas e tiradas do contexto original.

O resultado seria um rebaixamento dos sábios e de suas palavras aos olhos do povo. Futuros alunos, ou alunos em potencial, de forma ingênua conheceriam uma versão corrompida e distorcida do judaísmo. Assim, tirariam conclusões falsas - que o judaísmo é intransigente, anacrônico, teimoso, não se importa com o povo - como vemos com a maioria dos estereótipos absurdos que o judaísmo ortodoxo infelizmente adquiriu. Como resultado, futuras gerações morreriam espiritualmente e o nome de D’us seria profanado - que nunca aconteça.

Essa é a séria advertência da mishná - que os sábios da Torá sejam prudentes com suas palavras.

Do livro “Mussar Avicha”.